Partindo do princípio de que a posição da mulher em uma sociedade sempre sofre uma forte influência cultural, procuraremos demonstrar o papel que lhe cabia no Antigo Egito. O Mito de criação de Heliópolis, consagrado no Antigo Egito como um dos mais importantes, é fundamental para o resgate do papel feminino dessa formação social, o qual se revela extraordinário.
Segundo o mito, no princípio tudo era caos: o Nun. Nele, surgiu Atum – o autocriado – que possuía os dois princípios vitais: o feminino e o masculino. Atum criou sozinho o primeiro casal: Tefnut (a umidade) e Shu (a atmosfera). Esses deram à luz ao segundo casal: Nut (o céu) e Geb (terra), que conceberam dois outros pares de filhos: Osíris e Ísis, Seth e Néftis. Na luta pelo poder que se estabeleceu entre eles, Osíris, o bom, foi morto por seu irmão Seth, representante do mal. Seth colocou o corpo de Osíris em um sarcófago de madeira e o jogou no rio Nilo, cujas águas carregaram-no para o mar. Encalhou em uma praia de Biblos, na antiga Fenícia e uma tamareira cresceu e o envolveu, escondendo-o. O rei de Biblos, sem saber o que a árvore continha, mandou cortar o seu tronco e fez dele o pilar central da sua casa. Ísis descobriu o acontecido e conseguiu, depois de inúmeras aventuras em que mostrou ser uma mulher de muitas prendas e virtudes, retirar o corpo de Osíris, transportá-lo novamente para o Egito e fazer-se engravidar por ele. Seth, sequioso por destruir o irmão, roubou o cadáver, cortou-o em diversos pedaços e escondeu-os nos diferentes nomos do país. Ísis, por meio de uma penosa peregrinação, durante a qual teve de vencer muitos percalços, conseguiu reunir os pedaços do corpo de Osíris, juntá-los e embalsamá-los e assim realizou juntamente com os deuses Anúbis, Toth e Néftis, a primeira mumificação da história egípcia. Osíris ressuscitou para tornar-se o Deus-Rei do Mundo dos Mortos. Como havia provado ser uma devotada esposa e valente mulher, Ísis foi deixada sozinha nos cuidados com o filho na barriga. Foi capturada por Seth, que tentou seduzi-la, mas conseguiu escapar e deu à luz seu filho Hórus. Quando esse tinha 15 anos, Ísis levou-o perante o Tribunal dos Deuses, para reclamar sua herança por ser sucessor de Osíris. Ela o apoiou, perseverantemente, durante os oitenta anos necessários para ganhar de Seth o trono do Egito.

Entende-se por meio desse mito o papel descomunal reservado a Ísis: lutar contra tudo e contra todos pelo corpo de seu companheiro, criar a vida através do marido morto e conceber um filho. Tal fato significava, de um lado, eternizar o nome de Osíris e, de outro, assegurar a vida no Egito, pois Osíris, o deus da vegetação, era o sustentáculo da existência daquela formação social.
Através desse mito, entende-se que, no início dos tempos homem e mulher constituíam uma unidade física e mental: Atum era andrógino. Na luta pelo poder, estabelecido após a criação dos outros deuses, o elemento masculino salientou-se na disputa entre Osíris e Seth. Foi, contudo, o componente feminino, através da ação de Ísis, que propiciou a legitimação de uma divindade vencedora. Com essa maneira de pensar, torna-se fácil compreender a importância das rainhas na história do Egito, pois representavam uma parcela importante do poder político. Entende-se também a prática do casamento entre os irmãos da família real para consolidar o poder faraônico. Entretanto, qual a posição da mulher comum?
A senhora da casa
O título nebet-per– Senhora da casa-foi dado à mulher no Médio Império, quando constituía com um companheiro um casal distinto em um grupo socialmente organizado. Isso pode ser entendido como um indicativo das tarefas que lhe cabiam: a partir desse momento a mulher presumivelmente “reinava” sobre o conjunto mais abrangente da “casa”.
Não havia uma cerimônia religiosa para oficializar o casamento, mas podia haver um contrato, por escrito, entre o casal e era muito importante que os dois tivessem uma moradia comum. A mulher deveria contribuir com 1/3 dos bens necessários e o homem com o restante, para constituir o mundo material ideal para a nova vida.
Enquanto para alguns autores os homens geralmente iniciavam uma vida comum com uma mulher aos quinze anos de idade e elas com doze anos; para outros, os casais constituíam-se quando os jovens tinham mais idade.
A mulher solteira ou casada podia possuir bens, administrá-los e também determinar a quem pertenceriam com a sua morte. As mulheres eram tratadas como os homens em todas as instâncias da vida social. Andavam livremente pelas ruas, sem véus na cabeça ou no rosto.
Havia, certamente, alguns setores, nas casas, reservados ou considerados especiais para as mulheres. Entretanto, nunca estiveram confinadas a eles, como acontecia, por exemplo, nos gineceus da Grécia Antiga. A mulher, soberana da casa (henout), deveria ter muita força pessoal para lidar com as criadas, concubinas e demais pessoas do lar. Esse poder tornava-se consideravelmente mais expressivo se gerasse um filho homem, perpetuando, a exemplo de Ísis, a família nuclear.
No período do novo reino desenvolveu-se uma nova forma de Instruções de sabedoria, de lírica amorosa e escreveram-se esplêndidos textos no gênero de contos. Em todos resgata-se a figura da mulher, em diferentes perspectivas, todas reveladoras de uma fêmea menos idealizada e mais humana: amorosa, maternal, também exigente e egoísta, que buscava o prazer sensual e o poder material.
A posição da mulher no Antigo Egito era privilegiada, se comparada com as relações de gênero de suas contemporâneas. Geralmente não se designava como esposa de alguém, indicava o próprio nome precedido pela expressão “Senhora da Casa” ou simplesmente “Cidadã” ou pelo seu título profissional e religioso, se possuísse algum.
Uma mulher podia procurar o Conselho do lugar onde habitava e lastimar-se de alguma violência sofrida, acusando qualquer pessoa, até mesmo o próprio marido. Se a queixa fosse julgada procedente, poderia divorciar-se. Igualmente a mulher poderia testemunhar em qualquer outro tipo de querela, sem ter para isso permissão familiar do pai ou do companheiro.
O estudo da situação feminina em contextos históricos da antiguidade ajuda-nos a entender como era a convivência entre os sexos. E a compreender como e por que essas relações se alteraram ao longo da história da humanidade.
Você pode ler mais sobre o papel da mulher no Egito Antigo no livro Fatos e mitos do antigo Egito